Leia as Histórias
Muito já foi escrito, e ainda se escreve, sobre o Memorial do Imigrante/Hospedaria dos Imigrantes, mas há outro aspecto, pouco comentado, desprovido de sentimentos e que de uma forma ou de outra, nos toca diretamente. É o aspecto histórico.
Para que possamos compreender melhor, é preciso retroceder no tempo, desde quando se deu a posse de terra no Brasil. As sesmarias eram concedidas pelo governador ou pelo vice-rei e correspondiam a uma légua quadrada, ou seja, 44 quilômetros quadrados que custavam de 300 a 440 mil réis. Valor que não era impossível de conseguir por meus próprios ou por uma associação de pessoas prósperas da mesma família, mas o mais comum era a outorga gratuita pelo governador ou vice-rei sob a forma de favor a pessoas politicamente influentes (já naquele tempo).
O agricultor comprava escravos, mandava destocar o terreno, ateava fogo em tudo (e assim foi-se uma boa parte da mata nativa), construía sua própria casa e iniciava o cultivo da cana de açúcar. Os fazendeiros, muitos dos quais herdeiros de extensões de terras que tinham obtido por sesmarias ou por costumes desses pioneiros, se inseriram na economia do café em expansão.
Para fornecer braços à lavoura é instalada a Hospedaria no bairro de Santana, onde funcionara antes a sede do primeiro Núcleo Colonial estabelecido em São Paulo. Posteriormente o governo provincial transfere a Hospedaria para o bairro Bom Retiro, que tinha a capacidade apenas para 500 pessoas e já se mostrava inadequada para a recepção dos europeus.
Mais tarde foram adquiridos os terrenos situados na freguesia do Brás, onde está localizada a atual Hospedaria, na Rua Visconde de Parnaíba. Os imigrantes pegavam o trem no porto de Santos e desciam em uma estação de embarque e desembarque inicialmente dentro da própria hospedaria, aqueles que vinham do Rio de Janeiro, provenientes da Hospedaria da Ilha das Flores, na Baia da Guanabara, também se dirigiam para lá.
Planejada para abrigar 4.000 pessoas chegou a receber 10.000. Foi constituída de um andar térreo onde ficavam: uma casa de câmbio, um ambulatório, uma cozinha, um refeitório e uma despensa. No andar superior ficavam os dormitórios, em um anexo estavam instalados os intérpretes dos italianos, espanhóis, japoneses e outros, que eram contratados pelos fazendeiros.
Os banheiros eram constituídos, de uma latrina dividida em 10 compartimentos para cada três dormitórios, havia uma torneira e uma tina no pátio interno para beber água e lavar-se. Vigias patrulhavam os prédios dia e noite para reduzir a incidência de roubo e guardas nas entradas cuidavam para que ninguém entrasse ou saísse sem autorização, exceto fazendeiros e autoridades, mantendo os portões fechados, deixando de fora os parentes e outras pessoas que ali quisessem tratar de negócios ou outras situações, empregando se necessário forças desmedidas, sendo que "o controle total dos portões era crucial para a execução de seus objetivos", impedindo a livre entrada e saída dos imigrantes, transformando o local em uma espécie de presídio.
Os trabalhadores eram assim abandonados a uma condição de superpopulação, segregação institucional e solidão onde não podiam nem mesmo ir ao correio. Normalmente podiam ficar de quatro a oito dias com duas refeições diárias, as crianças de sete a doze anos recebiam metade da ração de um adulto, as de três a seis anos um quarto da ração e as menores de 3 anos nada recebiam.
No local recebiam atendimento médico, porém as doenças se agravavam e se propagavam na imundice e promiscuidade. A literatura é repleta e farta de depoimentos daqueles que passaram por ela. Também na vinda do Rio de Janeiro para São Paulo, havia reclamações:
- "Após 18 horas de uma viagem contínua pela ferrovia éramos amontoados como ovelhas"
Em outro depoimento, de linguagem coloquial, o imigrante relata:
- "Tratavam como animal, a porrete, a gente passava até fome lá... Tinha pessoal que
dormia no chão, não tinha colchão para dormir... Crianças e mulheres...".
Nos primeiros 20 anos por lá passaram 900.000 pessoas e cada dormitório era um salão nu, com espaço para 600 a 700 homens, mulheres e crianças dormirem no chão; sobre esteiras que eram entregues na chegada e devolvidas na saída. Em outro depoimento:
- "Era uma verdadeira torre de babel, centenas de espanhóis, russos, italianos, romenos falando gesticulando, gritando... Mais parecia um canil, ficávamos três dias, era preciso dar lugar aos outros que vinham".
A situação nesse local era insuportável e a hospedaria era conhecida como "o grande matadouro de imigrantes" como era descrita por um jornal de língua italiana em São Paulo. Outro jornal, também de língua italiana publicado na cidade assinalava:
- "A higiene, a moral, a alimentação, os tratamentos são coisas de dar horror, no verdadeiro sentido da palavra".
Os contratos feitos com fazendeiros eram realizados quase sempre através de intérpretes suspeitos, de forma verbal, sem garantias quanto à integridade moral e solvência do proprietário. Em cópia de ofício de Antunes dos Santos e Cia para Paulo de Moraes Barros, secretário da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, datado de 4 de outubro de 1913, lê-se: "Pelo pressente tomamos a liberdade de chamar a atenção de Vossa Excelência sobre faltas da parte da estrada de ferro São Paulo Railway que motivaram a entrega da cópia de uma carta que recebemos da Companhia Transpots Maritimes (em anexo)”.
Com o vapor "Espagne" que chegou á Santos, repetiu-se o mesmo caso. Esse vapor atracou ao cais número 19, ás 8h e somente ás 21h é que a estrada forneceu 11 carros para trazer 1300 imigrantes. O trem saiu ás 5 horas e chegou à hospedaria da capital ás 23h. “Inútil será demonstrar á Vossa Excelência os prejuízos materiaes que estas irregularidades nos ocasionam, como também o mau effeito que isto produz a esta pobre gente que passam horas sem comer e beber, tudo por culpa da Estrada de Ferro que nunca dá a devida atenção às contínuas reclamações do senhor Inspector de Santos. Contando com o juízo de Vossa Excelência, entregamos o caso para Vossa Excelência
resolver...".
"Mi abuela" estava nesse navio (proveniente de Gibraltar) entre essas 1300 pessoas. Só fui descobrir o oficio acima muitos anos mais tarde, já casado, formado e com filho. Quando eu era pequeno, eu estava dormindo no mesmo quarto com ela e o "abuelo", na Rua Monsenhor de Andrade, no Brás (sempre o Brás), ela faleceu nessa noite, acordei com o choro de todos em volta e isso, essa lembrança, eu nunca mais esqueço. Então quando você perambular pelo Memorial da Imigração/Hospedaria dos imigrantes, para buscar certidões, informações, livros e até mesmo para conhecer o local, você deve saber toda a história e o que representou aquela Hospedaria, de bom e de ruim.
Referências bibliográficas:
Hambre de Tierra - Imigrantes espanhóis na cafeicultura paulista 1880 - 1930
de Marília Klaumann Cánovas, Editora Lazuli, 2005. Vale à pena comprar
e guardar com carinho
Roteiros e fontes sobre a imigração em São Paulo 1850 - 1950, vários
autores, editora da UNESP, 2008. Para um aprofundamento maior, também vale
a pena comprar.
E-mail: newton_sismotto@hotmail.com
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Lindo comentario, demonstrou bem o sentimento e de que forma devemos entrar lá...
Obs.: Meu Bisavô chegou 1 mes depois deste oficio e foi levado pela esta mesma empresa... Enviado por Evandro - evandro.r.morais@gmail.com
È só irmos aos consulados com certeza teremos as provas,precisamos de um mundo sem fronteiras. Enviado por vilton giglio - viltongiglio25@gmail.com
Modesto Enviado por Modesto Laruccia - modesto.laruccia@hotmail.com
Cida Enviado por Cida Micossi - cida.micossi@gmail.com